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Poemas dissonantes

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A poesia de Nathaly Felipe é comparante e alusiva ??? tanto no modo ousado, em prol do estranhamento (???Ostranenie???), quanto no modo didático (recorrendo ao ???Por exemplo???). Aposta tudo nas imagens, e não faz por menos. Para entrar no jogo, é preciso aceitar que a poesia está inclusive onde a palavra dá um salto (um ???pulo / mortal???), onde flerta com a morte (???silêncio???), onde o pulsar da palavra se traduz em ???rubro???.

Há uma espécie de energia na angústia que coloca em contato bastante próximo a melancolia de ária (???As notas caem / Como gotas áridas???) e a resoluta pulsão de vida (???colérica a vida???). Embora se alimente da subjetividade, essa exposição das vísceras a excede em muito, e acaba por convergir com o fechamento do sujeito, que passa a se mostrar inscrito na exterioridade da paisagem, determinado por ela (???paisagens passeiam-me???). ?? verdade que alguma eventual ???confissão??? diz, quase em prosa, a beleza daquilo que é simples e sem palavra (infans), na sua liberdade de origem; mas a verdade é que, em Poemas dissonantes, o mundo todo parece se subsumir às analogias da imagem.

Dentro de uma tradição em que a poesia é chamada frequentemente a explicar seus fundamentos e sua razão de ser, toda a ???ontogênese??? do poema (ou do poeta) depende de que o aceitemos pássaro ou peixe, ou ambos (na figura do belo poema ???Icária???). Se, em ???Gesto???, a mãe ???criava peixes??? como flores (sendo talvez legado do momento matricial o gesto de ???colher peixes???), o pássaro é reivindicado como figura central e igualmente matricial. O pássaro é a vida mínima, o ???sinal ínfimo???, uma asa que plana na superfície de seu voo. ?? o lugar da leveza, embora carregue os hematomas da destruição.

O leitor perceberá que, assim como esse voo de pássaro, a poesia de Nathaly é delicada, dedicada à lógica da asa e do salto. Coloca-se inteira na proximidade anagramática (mais especificamente palindrômica) da ???Eva-ave???, para onde confluem a origem, a mulher e o pássaro. Seu voo não se projeta somente no risco do ar, no perigo e no traçado da altura, mas (sendo flutuação de alguma maneira) também se sustenta no líquido, no morno silêncio líquido da vida e da família, numa espécie de simulação de útero.

O líquido pode ser entendido como o elemento do sujeito-fêmea. Criatura desse oceano, a ???sirena??? mantém em proximidade estrita a experiência da poeta (???pássaro-fêmea???) e seu outro (o ???canto da sereia??? da poesia). Em outras palavras, ainda neste ponto não se trata de uma contemplação tranquila do real, mas de um ímpeto que assume o próprio risco. Como se o impulso das asas de Ícaro não se consumisse apenas com o calor do sol, mas tivesse paralelo direto com o rosto refletido de Narciso, enfrentando o perigo das coisas que, como espelhos, florescem no cristalino da água (???florescem / espelhos d???água???). Olhar-se é entrar na lógica do ???espelho-chaga???, é submeter-se ao ???espéculo d???água???, consentir-se ???ventre eterno prenhe??? e ???vazio fundante???. O lugar de ???silêncio??? que está em jogo nessa teoria poética é, portanto, cálido e ameaçador, ???intranquila / lavra??? de um estar no mundo, exposto à sensualidade e à violência dos sentidos.  

No idioma secreto, mas ao mesmo tempo muito exposto, que vai se constituindo a partir daí, a ???aporia??? aparece à poeta como florescência que coroa com seus dilaceramentos o cuidado dos dias ??? a cesta de flores-peixes que lhe compete.  Recusando o círculo do ovo e da galinha, a poesia propõe deslocar o jogo vicioso do sujeito e do poema (o jogo da origem do sentido), instalando-o mais diretamente no impasse. A pulsão da escrita, por exemplo, substitui o erro da memória (???A poesia só faz???), mas só pode exercer a palavra e o ato aceitando os limites impostos pela domesticação: a palavra está ???nascente??? e ???ausente???, entre a memória e o florescimento, entre o amortecimento e o enlouquecimento (???Vaga???), entre o vago e a vaga.

Com uma tonalidade afetiva próxima da melancolia, a poesia é ???eco??? de uma vida muda. A vida muda: a homonímia sugeriria não só a vida que se cala, mas a vida que transforma, que busca o movimento. ?? passarinho, mas quer voar fora da asa.

Analogamente, Poemas dissonantes retoma de forma mais ou menos aberta a memória de uma coleção de imagens e de ritmos: ouvimos a poesia de Orides Fontela, eventualmente de Manoel de Barros, entre outras reminiscências teóricas e literárias. Mas não só do eco vive a poesia de Nathaly Felipe Ferreira Alves. Apesar de seus esgarçamentos, ela se abre resolutamente para o voo.

?? no limitar desse gesto, no ímpeto do primeiro livro, que caberia considerá-la.

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