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Cinco anos depois de recompor a vida e a trajetória do pai em O lugar, Annie Ernaux retorna à autossociobiografia, gênero que inaugurou e que a consagrou, para narrar as memórias que guarda de sua mãe, escritas nos meses seguintes à morte dela.
Com a tarefa de articular uma narrativa “entre o familiar e o social, o mito e a história”, Ernaux parte da mesma “linguagem neutra” de outros livros para escrever sobre a própria mãe, mas também sobre a vida de uma mulher. No entanto, a dor e a fragilidade do luto alteram essa equação de forma sutil, porém fundamental: em contato com a perda materna, o estilo seco assume um contorno visceral que vai direto ao coração das lembranças. À flor da pele, ela atenta para as muitas facetas da dor, desde as mais ínfimas. “Alguns pensamentos deixam um buraco em mim: pela primeira vez, ela não vai ver a primavera.” Apesar disso, reconhece a dimensão social de seu luto: “perdi o último vínculo com o mundo do qual vim”.
Nascida no início do século 20, sua mãe foi operária desde os doze anos. Tinha orgulho do ofício e de buscar a independência. “Ir longe”, assim Ernaux define o princípio que regeu a vida dessa mulher. Depois de se casar, abriu com o marido o café-mercearia onde trabalhou até a terceira idade. Leitora voraz e aberta para o mundo, estimulava os estudos da filha na tentativa de lhe prover o que nunca tivera.
Quando, já viúva, vai viver com Ernaux e os netos, mãe e filha experimentam nas miudezas do cotidiano a distância que a ascensão social da filha singrou entre as duas. Com precisão cirúrgica, a autora recupera os detalhes dos gestos maternos, as expressões, a inquietude e a vivacidade que a mãe manteve até o fim da vida, numa casa de repouso, já acometida pelo Alzheimer.
Sóbrio e comovente, este livro é peça central no quebra-cabeça do projeto da autora de escrever a vida. Nele é possível acompanhar não só a trajetória de uma mulher da classe trabalhadora, mas os sentimentos viscerais de sua filha: amor, ódio, admiração, ternura, culpa e um vínculo inabalável.