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O eu-lírico dos poemas de ???um abismo quase??? tem o que dizer e o diz magnificamente bem. Ou seja, sem efusões sentimentais, sem borrifar as flores da retórica com o orvalho da inspiração, mas, em contrapartida, sem investir maciçamente na forma de modo a convertê-la numa espécie de conteúdo dos poemas, como o fizeram os vanguardistas mais ortodoxos. Aliás, se as vanguardas foram pródigas na adoção do discurso metalinguístico em detrimento da ???marca suja da vida???, os poemas de Marcel Vieira questionam a vida quer no seu aspecto metafísico, quer na sua feição mais prosaica, mais cotidiana, a exemplo do que ocorre no poema ???domingo na praia???, que poderia resvalar para a banalidade, para o meramente trivial, não fosse o sortilégio, o poder transfigurador da linguagem. Mas a poética é, também, objeto de questionamentos do eu-lírico.
A pedra sempre aparece na lírica de Marcel Vieira, mas longe de repercutir no seu discurso, tornando-o mineral, árido, asséptico, duro, eis que ela é não só amaciada, apurada, como algumas vezes antropomorfizada pela dicção desse poeta que já acrescenta e tem muito mais a acrescentar à poesia brasileira. Em suma, ainda com referência à pedra, o eu-lírico não a quer e tampouco a deseja à imagem e semelhança da pedra cabralina, ???como um grão imastigável, de quebrar dente???, cuja tarefa consiste em obstruir a ???leitura fluvial, fluviante???, para açular, instigar, a atenção do leitor. Diria, como já o disse a respeito da prosa de Frutuoso Chaves, que os versos dos poemas de ???um abismo quase??? fluem ???mansos e pacíficos como rios canalizados???.
Não se conclua, no entanto, que os poemas de Marcel Vieira guardem alguma consonância com o lirismo comedido, bem-comportado, com o lirismo funcionário público do poema bandeiriano. Com efeito, se o autor de ???um abismo quase??? não investe no experimentalismo e está longe de ser um iconoclasta, longe está do conformismo, da passividade, do academicismo, no que tange ao construto de sua poética. ?? um construtivista. E, como tal, funde e inter-relaciona a tradição com a renovação, o que quer dizer que não rejeita as conquistas das vanguardas, embora as incorpore parcimoniosamente, sem pirotecnias.
Sérgio de Castro Pinto