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O Tempo redescoberto, com tradução de Lúcia Miguel Pereira, é o último volume da obra Em busca do tempo perdido, um dos maiores clássicos da literatura mundial. E sendo o último é também o primeiro, o que, à primeira vista, pode parecer estranho. Mas é neste volume que o leitor entenderá perfeitamente quais foram as ideias que nortearam o narrador desde o primeiro volume, No caminho de Swann. É na segunda parte de O tempo redescoberto que tudo se revela, num ritmo narrativo apaixonante.
O romance foi originalmente dividido em três partes (seguindo edição de 1927 usada pela tradutora Lúcia Miguel Pereira e atualizada para a presente edição com base no texto de 1989). Na primeira, Tansoville, Proust retoma a narração de A fugitiva. O herói se encontra na mansão de Robert e Gilberte Saint-Loup, onde, em seu quarto de hóspede, projeta nas paredes suas reminiscências, como a lembrança do campanário de Combray e a sua relação com Albertine. No convívio da casa, também entra no tema da “inversão”, como a de seu amigo Robert, que tinha amantes para disfarçar sua relação com o violinista Morel. Esses elementos serão retomados ao longo do romance, principalmente na segunda parte, em O Sr. Charlus durante a guerra; suas opiniões, seus divertimentos.
Entre as dúvidas pessoais mais profundas do narrador está a dos seus “dons literários”. Diante do enxame de lembranças, ele se pega pensando na sua própria falta de talento em poder fixar todos os seus pensamentos numa obra literária. Tema que será tratado, e revelado, na última parte do livro. Antes, porém, ele ainda explora a figura de Charlus, tio de Robert, um velho e alquebrado homem, cujos desejos intensos o levam a frequentar uma espécie de “inferninho”, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A velha nobreza e sua perversão sexual mais uma vez é tratada, mas aqui num dos momentos críticos da vida europeia. No tecido que sua narrativa arma, todos os tempos parecem se encontrar – o íntimo e o histórico –, ou como ele diz, ao perceber as relações entre situações dispersas na memória, “as lançadeiras ágeis do tempo tecem fios entre as lembranças que nos parecem a princípio mais independentes”.
São essas lançadeiras que ele irá perceber, em pleno funcionamento, na bela última parte do romance, A recepção da princesa de Guermantes. No caminho da recepção, enquanto remói suas possibilidades literárias, ele tropeça nas pedras irregulares do calçamento. Esse simples tropeção será um momento de alta epifania. É como se a sua máquina do mundo, enfim, se abrisse: o tropeção despertara sua memória, como a madeleine no chá, lançando-o no sistema sanguíneo do tempo. Como essa, outras situações tiveram a mesma função. Já na sala de espera dos Guermantes, um tilintar de colher o colocou novamente diante do passado. Era, como ele diz, “um pouco de tempo em estado puro”.
É desta série de memórias involuntárias, de prazer intenso e de alta revelação, que nasce o projeto de Em busca do tempo perdido. É quando o narrador percebe como fixar a riqueza de sua própria experiência, num caminho que entranha o ser íntimo com o mundo exterior. Essas são, sem dúvida, as mais belas páginas da literatura universal. “Compreendi que a matéria da obra literária era, afinal, minha vida passada; que tudo me viera nos divertimentos frívolos, na indolência, na ternura, na dor, e eu acumulara como a semente os alimentos de que se nutrirá a planta, sem adivinhar-lhe o destino, nem a sobrevivência”. E é esta planta, com suas mil nervuras, que o leitor encontrou ao longo do conjunto de Em busca do tempo perdido.
Esta nova edição, inteiramente revista e anotada, traz ainda prefácio e resumo de Guilherme Ignácio da Silva, posfácio de Bernard Brun e um belo ensaio da professora da PUC de São Paulo e crítica literária Leda Tenório da Motta.
*Texto escrito pot Heitor Ferraz, jornalista, professor e poeta.