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Apesar de sua absoluta beleza, O lustre talvez seja, entre as excepcionais obras de Clarice Lispector, a menos comentada. Dele, quase nao se pode falar (e sim absorve-lo), pois nao contem aquelas materias de que se servem os romances para auxiliar-nos a fixar os acontecimentos. Embora bem pouco ocorra, sabe o leitor que algo terrivelmente forte e de grande densidade esta sendo posto em movimento, expandindo-se sem cessar, nao por meio de uma progressao de fatos, mas por experimentos da lingua, o seu amago, a um tempo polida e selvagem. As economicas falas, as cenas descritas e as apreciacoes sobre o mundo exterior inserem-se em um campo verbal regido pelo fenomeno do fermentar, sendo as paginas cada vez mais e mais acrescidas de camadas e camadas de vocabulos, imagens e pensamentos providos (e geradores) de uma justeza estetica, filosofica e afetiva inigualavel. Sem defender ideias, apresenta-se o proprio ato de pensar, seu minucioso processo de formacao, constituido de subitas clarividencias e de assombroso vigor, lancando-nos na crua e complexa materialidade das articulacoes mentais imaginacao e pensamento, por frases limpidas e, contudo, cheias daquela violencia de vida que rarissimas obras sao capazes de atingir. Conviver com toda especie de coisas: as comuns, as rudes, as excluidas. Aproximar-se dos multiplos estados de espirito, extrair-lhes os necessarios nutrientes. E assim fortalecer a vontade, para entao ser capaz de escalar a existencia, ir de um ponto a outro, ampliando a visao e o saber. Nao se trata portanto de um livro ou de uma historia a ser contada. Trata-se de valiosa e impressionante operacao de arte. Por isso nao e possivel reter na memoria, senao naquela que se encontra distribuida por todo o corpo, envolvendo especialmente a respiracao e o sangue. ROBERTO CORREA DOS SANTOS, Ex-professor de Teoria da Literatura e de Semiologia dos Programas de Graduacao e Pos-Graduacao em Letras da PUC-Rio e da UFRJ.