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Como se fosse um espelho invertido de As primas, obra que consagrou Aurora Venturini, este romance mostra outra protagonista extraordinária: María Micaela Stradolini, vulgo Chela, é uma jovem superdotada, porém desprovida de qualquer senso de sociabilidade, que nos apresenta sua família, parte da alta burguesia argentina dos anos 1920. Com um estilo verborrágico que revela tanto excesso de vocabulário quanto carência de autopercepção, Chela oferece um retrato involuntário e constrangedoramente fiel do ambiente que a circunda. Por trás dessa narrativa escandalosa está a mente brilhante de Venturini, cronista mordaz dos costumes de seu país e da natureza humana.
A mãe de Chela é uma pianista cujo fracasso na arte desperta o zelo desmedido por uma coleção de bibelôs. O pai é tão rigoroso que a filha chega a urinar quando o encontra. A delicada irmã mais nova, Lulita, é a preferida dos progenitores, mas motivo de escárnio constante por parte da narradora. Diferente do irmão caçula, portador de deficiência e quase abortado por indicação médica, que conquistou o coração de Chela com sua fala: ???Mmm… Mmm… Mmm…???.
A essa galeria inusitada de personagens somam-se outros não menos curiosos: freiras e padres, mendigos tarados e membros de sociedades secretas, seres grotescos que dão um toque de realismo fantástico ao romance, sem dúvida uma via da autora para ironizar a tradição literária argentina. E não só: as artimanhas da criadora permitem que vejamos o que suas próprias criaturas desconhecem. Ao expor o pedantismo risível de Chela por meio de jogos de linguagem e trechos herméticos, Venturini eleva a voltagem cômica do romance e carnavaliza a intimidade que a alta sociedade argentina pensa ter com a Europa.
Numa espécie de paródia, as viagens de Chela em busca de suas origens escancaram a mais clássica discrepância: a filiação nobre e a erudição estão imbricadas ao que há de mais sombrio no mundo ??? fascismo, racismo e classismo. O atrevimento de Venturini em mostrar o lado monstruoso do que se pretende cristalino torna este livro uma saga desconcertante e necessária, conferindo à autora o status de contemporânea a sua posteridade.