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Memoria e historia se misturam e ao mesmo tempo se esquivam no relato semiautobiografico Meu pai, minha mae, de Aharon Appelfeld (1932-2018), lancamento do selo Ilimitada da CARAMBAIA. O romance, originalmente publicado em 2013, e uma das ultimas obras do escritor que integra a linha de frente da moderna literatura israelense ao lado de nomes como Amos Oz e David Grossman. Por seu estilo original e pela abordagem obliqua dos temas fundamentais do judaismo nos seculos XX e XXI, Appelfeld ocupa um lugar unico entre seus contemporaneos. O romancista Philip Roth, um de seus maiores admiradores e corresponsavel pela publicacao de seus livros nos Estados Unidos, o definiu como um autor deslocado de obras deslocadas, que soube se apossar de modo inconfundivel do tema da desorientacao . Appelfeld filtra com sua historia pessoal a diaspora judaica, a perseguicao nazista e a fundacao de Israel historia marcada, aos 8 anos, pelo assassinato da mae seguido de uma fuga que o levou a se juntar a um bando de ladroes de cavalos e ao trabalho como servical de uma prostituta, ate chegar a Palestina, dois anos antes da criacao de Israel, sem familia e sem idioma. Meu pai, minha mae retoma uma fase anterior, idilica mas assombrada pelo medo, da infancia do escritor. O livro se passa em 1938 e narra o mes de veraneio de uma familia da burguesia judaica as margens do rio Pruth, numa regiao que havia sido alguns anos antes parte do Imperio Austro-Hungaro. Pai, mae e um filho de exatos 10 anos e 7 meses, chamado Erwin (nome de batismo do escritor), atravessam seus dias entre horas dedicadas a natacao e o convivio com outros judeus em ferias. Sao momentos de tranquilidade, em que a iminencia de uma guerra e do acirramento da violencia contra os judeus e insistentemente subestimada. Num dado momento a mae de Erwin desabafa: Tenho que admitir que nao estou satisfeita com o fato de ser judia. Nao sei o que ha de bom nessa coisa superflua que ha em mim . Essa coisa superflua , no entanto, esta na essencia da memoria reelaborada por Appelfeld. Pelos olhos do menino, o leitor conhecera um pai esportista, cetico e racional em confronto sutil com a mae flexivel e inquiridora. Outros personagens frequentam o cenario: um homem diabetico que teve sua perna amputada, uma bela garota desiludida amorosamente, um medico abnegado, uma vidente, um escritor as voltas com as exigencias do oficio, um ex-socorrista do exercito, uma senhora que na juventude desprezou o cortejo de um principe. O exercicio de perscrutar e refazer memorias e o reforco das caracteristicas economicas do idioma hebraico trazem a literatura de Appelfeld seus tracos unicos. O tradutor e autor do posfacio da edicao da CARAMBAIA, Luis S. Krausz, professor de literatura hebraica e judaica da Universidade de Sao Paulo, descreve a maestria do escritor: Seu estilo e sempre marcado pela sutileza, pela reticencia e estabelece com o leitor um jogo tacito, ja que este sabe de coisas que os personagens ignoram. Dessa forma, a literatura de Appelfeld torna-se, tambem, uma historia da catastrofe narrada pelo avesso. Ele fala do genocidio justamente ao nao falar do genocidio . Aharon Appelfeld nasceu nos arredores de Czernowitz, hoje na Ucrania e entao na Romenia. Seu pai era industrial, e a familia fazia questao de falar alemao em vez do idiche utilizado pelos judeus mais pobres. Quando os soldados alemaes chegaram a cidade, mataram centenas de judeus, entre eles a mae de Appelfeld. Ele e o pai foram levados a um campo de trabalhos forcados, do qual o escritor conseguiu fugir para as florestas da Ucrania, sempre escondendo o fato de ser judeu, o que poderia lhe custar a vida. Com a libertacao, Appelfeld, aos 12 anos, juntou-se ao exercito russo, trabalhando em cozinhas de campanha. Com o fim da guerra, viajou para um campo de refugiados na Italia e de la rumou para a Palestina. Aos 17 anos, ingressou no exercito israelense, quando comecou a estudar literatura e filosofia, tentando, como declarou depois, encontrar a si mesmo. O esforco foi acompanhado pelo estudo do hebraico, totalmente desconhecido ate sua chegada. A capa da edicao da CARAMBAIA, desenhada por Daniel Justi, faz referencia a esses anos, misturando caracteres latinos e hebraicos. O primeiro livro de Appelfeld, Ashan (Fumaca), foi publicado em 1962, e seguiram-se mais de quarenta titulos, entre eles Badenheim 1939 (1975), Volta ao anoitecer (1996) e Expedicao ao inverno (2000). O escritor recebeu premios em todo o mundo e e um sucesso de vendas em Israel, embora tenha observado que seus leitores nao sao os sobreviventes do Holocausto, mas seus filhos. Appelfeld tambem aparece como personagem do romance Operacao Shylock, de Philip Roth.